No ar há quase um mês com Segundo Sol, João Emanuel Carneiro vem mostrando que, mesmo com os deslizes cometidos em A Regra do Jogo, não perdeu a habilidade de encaixar, desenvolver e contar histórias de maneira singular. Com novelas que mais parecem seriados (estilo iniciado em A Favorita, de 2008), JEC tem uma característica marcante: personagens ambíguos e imprevisíveis. E isso vale tanto para mocinhos quanto vilões – termos esses que, no universo televisivo do autor misturam-se facilmente.
Em Segundo Sol, João Emanuel volta com suas figuras com personalidades específicas, trama forte e ágil, sem tempo a perder. Apesar das polêmicas bastante justificáveis (a pouca presença de negros numa trama ambientada na Bahia, onde mais de 80% dos habitantes são pretos – assunto para outro texto), o autor confirma o sucesso horário das 21h, que recuperou a audiência ano passado, com A Força do Querer, de Glória Perez, e se manteve com O Outro Lado do Paraíso, de Walcyr Carrasco.
Quando estreou como autor solo na Rede Globo, em 2004, Carneiro estabeleceu um marco histórico: trouxe a primeira protagonista negra em uma telenovela da emissora, papel defendido pela atriz Taís Araújo. Uma trama leve e despretensiosa (mesmo abordando temas espinhosos, como o racismo), Da Cor do Pecado já mostrava o talento de JEC em não se contentar em abordar simples maniqueísmos em suas tramas.
Suas histórias, apesar de, algumas vezes, apresentarem os mocinhos e os vilões declarados, sempre traziam aquela peça chave que quase nunca agia de forma óbvia, de acordo com o que o público esperava dela, a partir do que havia sido apresentado inicialmente. Na estreia, esse personagem foi Bárbara (Giovanna Antonelli – atriz que repetiria a parceria com JEC por mais duas novelas, incluindo Segundo Sol). Ex-noiva de Paco (Reynaldo Gianecchini), ambiciosa e obsessiva, Bárbara também tinha seu lado carente e manipulável.
O próprio Paco, apesar de ser mostrado como um bom rapaz, apaixonado por Preta (Taís), foi capaz de mentir a própria identidade, fazendo-se passar pelo irmão gêmeo, Apolo (que ele não sabia que tinha, na época) durante oito anos. Ao se reencontrar com Preta, ele continuou mentindo o verdadeiro nome e origem. Paco, por diversas vezes, mostra-se um personagem acuado, até mesmo covarde diante de situações decisivas, o que contrasta com o temperamento forte de Preta.
Dois anos depois, em 2006, de volta com a parceria com Taís Araújo, dessa vez como uma vilã que, numa dupla com Lázaro Ramos no papel inesquecível de Foguinho, trouxe a característica mais recorrente e assertiva de JEC nas telas da Globo: personagens ambíguos, sem maniqueísmo. Em Cobras e Lagartos, Foguinho rouba a herança de Duda (Daniel de Oliveira) por ser homônimo do mocinho da trama e desfruta da fortuna junto com a mulher pela qual é apaixonado, enquanto o verdadeiro herdeiro passa por diversas dificuldades durante a novela, até o final feliz.
Foguinho ainda é um dos personagens mais lembrados interpretados por Lázaro e construído por JEC. E não é para menos. Todas as nuances do ex-vendedor-sanduíche, que trabalhava embaixo do sol quente da região do Saara, no Rio de Janeiro, era mal tratado pela família e rejeitado pela vendedora da loja Luxus, Ellen, que queria ser rica e famosa foram muito bem construídas, pertinentes e causaram divisão de opiniões na época.
E essa tem sido a característica mais recorrente nos personagens de JEC: o passeio entre o bem e o mal, os personagens sem lados definidos ou que mudam de acordo com as circunstâncias. Porque é assim que o ser humano, em sua essência, age. Pessoas não têm definições eternas, acertos constantes ou erros incessantes. As mudanças são naturais na vida real e JEC é um dos autores que mais consegue captar esse aspecto e transmiti-lo com propriedade, originalidade e, principalmente, naturalidade.
Não é por menos que, na novela de maior repercussão e vendas internacionais de JEC (e uma das mais vistas na última década da TV Globo), até hoje, Avenida Brasil (2012), traga a personagem principal com tantas nuances que vão da pura frieza e implacabilidade diante da sua maior inimiga, à indecisão, a paixão desmedida e a entrega ao filho da arqui-inimiga.
Nina (Débora Falabella – em uma de suas melhores atuações da carreira) é sim a protagonista de Avenida Brasil. Mas não há como negar que suas decisões e comportamentos calculados milimetricamente desde a infância para se vingar de Carminha (Adriana Esteves, um fenômeno) estão bem longe de uma simples mocinha.
Nina mente, finge, engana, é rancorosa e, quando finalmente encontra o momento oportuno para colocar seus planos em prática contra a antiga madrasta, não somente humilha a rival como se firma dona de toda a situação e devolver todos os anos que sofreu em um lixão e separada ainda na infância do pai amoroso.
Contrastando com seu nome doce, que significa “graciosa”, Nina pode ser bastante dura. E tudo isso a transformou em uma das melhores protagonistas do horário das 21h da Globo e da cartela vasta de mulheres heroínas de João Emanuel Carneiro, junto com outras duas, que, pode-se dizer, definiram o modus operandi de JEC contar histórias.
As faces opostas da mesma moeda
Desde a chamada, no outono de 2008, dez anos atrás, A Favorita mostrava que seria uma novela diferente. Duas mulheres contando exatamente a mesma história, mas de lados opostos e de forma que cada uma beneficiava a si mesma.
Apesar de não ter registrado grandes números na audiência — 35 pontos na estreia, abaixo do esperado para o horário das 21h —, principalmente após o sucesso de Duas Caras, de Aguinaldo Silva (que também trouxe o personagem principal bastante ambíguo, que começa como vilão declarado e termina como um homem apaixonado pela mocinha que havia roubado no início da novela), A Favorita conseguiu conquistar o público, à medida que os capítulos iam transcorrendo, com o principal mistério ainda escondido, descoberto apenas depois de passados 40 capítulos.
A Favorita foi um divisor de águas para a carreira de João Emanuel Carneiro. Na trama, o autor inovou ao brincar com as percepções do público, fornecer elementos que depunham uma situação para, logo em seguida, negar todos eles e disponibilizar outros, contrários aos anteriores. JEC construiu a vilania de Donatela (Cláudia Raia) com a história de criar a filha Lara (Mariana Ximenes) da rival e dizer a menina que a mãe verdadeira, Flora (Patrícia Pillar) era a assassina do seu pai.
Donatela tinha todas as características de uma vilã clássica: rica, mimada e fútil. Aparentemente, pensava apenas em si mesma e usava a menina para se fazer de vítima diante de Flora. O autor chegou a dizer na época da novela que tudo o que fazia para equilibrar a preferência do público entre as duas mulheres não dava certo, porque as pessoas sempre tendiam a gostar mais de Flora. De acordo com ele, os telespectadores tinham mais facilidade em associar boas qualidades a pessoas pobres e Flora, como uma ex-presidiária supostamente presa injustamente, era um prato cheio para a compaixão coletiva.
Recepção fora dos padrões de João Emanuel Carneiro
Com dois imensos sucessos, histórias que fugiam do simples melodrama e que forneciam embates emblemáticos, o anúncio de A Regra do Jogo, terceira novela das 21h de JEC, inspirou grande expectativa aos telespectadores, principalmente após o furor na internet com o teaser que mostrava os personagens em um tabuleiro de xadrez.
Sucedendo Babilônia, o autor criou o que pode ser considerado o seu universo mais complexo até aqui, que, ao mesmo tempo em que trazia velhos questionamentos levantados por JEC, apresentavam ambiguidades mais difíceis de serem identificadas. O próprio protagonista, em sua essência e na forma como foi apresentado ao público, não deixava claro quem era Romero Rômulo de verdade (o fato de, no teaser divulgado um mês antes da estreia da novela, com o personagem vestido de branco e revelando uma roupa preta por baixo, ao final da sequência, evidencia bem isso).
Fora ele, a trama apresentou diversos personagens dúbios, manipuladores, duvidosos, mentirosos, mas por causas nobres (ou nem tanto assim) e falsos mocinhos, como Zé Maria (Tony Ramos) e Gibson (José de Abreu). Talvez esse tenha sido um dos motivos para a recepção morna do público, já que os verdadeiros mocinhos, principalmente a personagem Tóia (Vanessa Giácomo), tenha sido tão obviamente do bem. Além do fato, é claro, de estar concorrendo com um dos maiores sucessos da Record, Os Dez Mandamentos.
Mesmo não conquistando os telespectadores, é impossível dizer que A Regra do Jogo não trouxe suas marcas mais significativas de contar história: vingança, obsessão e, claro, personagens (ou peças) quase ou totalmente imprevisíveis.
Sempre objetivo em suas entrevistas, JEC afirmou na época do lançamento da novela, em 2015, para o jornal Folha de São Paulo, que seu amor por literatura policial o inspirou a escrever a trama protagonizada por Romero Rômulo (Alexandre Nero). E essa característica é facilmente percebida nas suas novelas mais recentes, de A Favorita à A Regra do Jogo. Segundo Sol tem certo distanciamento desse gênero principalmente por ser uma novela solar. No entanto, ainda traz elementos pertinentes como tramas complexas, mesmo não sendo originais.
Pode-se dizer que, mais do que a história, JEC constrói personagens cativantes, de fácil identificação, com mocinhos muitas vezes dúbios e vilãs (coincidentemente ou não todas loiras até hoje) que, por vezes, parecem mais humanas do que as próprias mocinhas (com exceção, talvez, de A Favorita).
Como esquecer do descontrole emocional de Carminha? Muito parecida nesse aspecto com Karola (Deborah Secco), de Segundo Sol. Ou da sedução esperta de Atena (Giovanna Antonelli), de A Regra do Jogo? E das decisões erradas e arrependimentos sobre a vida sofridos por Paco, em Da Cor do Pecado? Situação que muito lembra Beto Falcão (Emílio Dantas), atual protagonista de João Emanuel Carneiro, em Segundo Sol, que será melhor destrinchado em outro texto.
Após seis novelas, JEC tem um estilo facilmente identificável, que dialoga com o público, em um texto rápido e cotidiano, sem perder as nuances pelas quais o personagem pode passear e, principalmente, sem cair no marasmo das histórias simples e fáceis.